terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O expresso da desilusão

O cheiro de relva molhada invade o interior do noturno naquela madrugada de sábado, misturando-se com o odor da fumaça pardacente, expulsa velozmente pela chaminé da “ Consolidation” que busca ruidosamente o sul de Minas pela R. M. V.

O rapazinho imberbe, com o olhar perdido no horizonte, cola o rosto no vidro frio da janela, onde gotas do orvalho da madrugada se deslizam, uma após outra, brincando na superfície escorregadia da vidraça.

E o trem, sacolejando na escuridão da madrugada, prossegue sua viagem, fazendo ecoar por entre os cortes, um apito triste e angustiante, oprimindo ainda mais o seu peito.

A luz amarelada e oscilante do interior do vagão dá um toque ainda mais sombrio à cena, no crepúsculo daquela madrugada fria.

Os passageiros, adormecidos, ignoram o drama a se desenrolar ali ao lado e o jovem, olhos fixos na janela, vê seu rosto espelhado no vidro e duas lágrimas a rolarem, imitando as gotas de orvalho do lado de fora da janela.

O som cadenciado do vapor agora é mais lento e no trecho mais íngreme da serra o comboio quase chega a parar, exigindo do foguista um esforço extremado para manter a caldeira da Baldwin, com a pressão necessária para superar aquele difícil trecho da Serra da Mantiqueira.

E o jovem rapaz ali, inerte, mudo, olhar perdido no horizonte, apenas enxuga o rosto, passa as mãos nos cabelos despenteados, soltando às vezes um suspiro ou um soluço, quando grossas lágrimas insistem em banhar seu rosto.

Minas Gerais, cidade de Maria da Fé, é o seu destino !

É ali que ele busca aquela que encantara seus dias, tornando-os os mais venturosos de sua vida !

Na pequena e aconchegante Maria da Fé está a sua esperança de reencontrar o grande amor da sua vida, a doce e adorável musa que o fez enxergar a vida com outros olhos, alimentando suas fantasias e trazendo uma indescritível sensação de felicidade que transbordava de seu peito e chegava até mesmo a contagiar aquelas pessoas com as quais convivia.

E naquele trem, naquela madrugada, buscava ele novamente uma razão para viver. Desde que se despedira dela na estação de Cruzeiro, não mais encontrara a paz, e a a felicidade o abandonara tornando sua vida triste e acinzentada. Há meses vinha adiando esta decisão, mas agora estava decidido, iria a seu encontro à qualquer custo !

Porém, seu coração estava oprimido, sua garganta apertada e seus olhos vermelhos, diante da expectativa de uma possível desilusão.

Estava inseguro, amedrontado nervoso...

Tinha medo do que iria encontrar; afinal há tempos suas cartas deixaram de ser respondidas...

Relembra os momentos em que passaram juntos...

Os beijos apaixonados sob o céu salpicado de estrelas, na “ praça nova “ da bela e graciosa Cruzeiro.

As juras de amor eterno e os planos para um futuro “ninho de amor”, enquanto ouviam o “Grupo Abba” na pequena vitrola à pilha.

As carícias, os sussurros, os sonhos de amor e os planos de uma união que jamais aconteceu...

Sente ainda o sabor dos seus lábios mornos e o perfume dos seus cabelos esvoaçantes naquele último beijo na plataforma da estação de Cruzeiro...

Quer gritar para o mundo o quanto a ama, quer dizer para todos o quanto sofre, quer escrever o seu nome no vidro embaçado da janela, mas nada faz; apenas chora, e seus olhos, cansados acabam se fechando e ele adormece embalado pelo balanço do expresso noturno que avança sem cessar.

O cansaço acaba tomando conta do seu corpo e agora ele dorme... E sonha com ela a correr de mãos dadas com ele sobre um gramado verde e macio...

E a vê sorrindo, chamando seu nome com aquele rosto trigueiro que tanto o encantou...

Ele corre e a abraça, beijando-a com avidez, acariciando seus cabelos, seu corpo, beijando seu rosto, seus olhos, sua boca...

Eis que de súbito é acordado pelo Chefe do Trem que o avisa estarem se aproximando da próxima estação: Maria da Fé !

Acorda assustado, ainda perdido entre o lindo sonho e a dura realidade. Recusa-se a acreditar que tudo aquilo não passara de um devaneio, quer fechar os olhos para sonhar mais, mas não pode...

Desolado pega sua bagagem, desce aturdido na pequena estação e observa o trem partindo com apitos estridentes que se perdem na curva e ficam cada vez mais distantes.

Relutante dirige-se a uma pequena pousada nas adjacências da estação, deixa ali uma pequena bolsa com seus poucos pertences e sai imediatamente à procura dela.

Tem às mãos uma carta ( a última que recebera ) e seguindo o endereço do remetente procura o endereço, encontrando-o facilmente a algumas quadras dali.

Nervoso, com o coração a palpitar e a respiração ofegante bate palmas e depois de algumas tentativas, eis que sai uma senhora para atendê-lo.

Sua ansiedade é grande, aperta o envelope entre os dedos e gaguejando cita o nome dela, perguntando se é ali mesmo o endereço.

Recebe a resposta como uma punhalada em seu coração; o endereço era aquele sim, mas ela havia se mudado já há algum tempo, por ocasião do seu casamento.

A notícia deixa-o desnorteado, quer morrer, gritar, correr, chorar e acaba afogando suas mágoas no balcão de um pequeno e malcheiroso botequim dali de perto.

Daquele dia em diante nunca mais foi o mesmo. Naquela noite dormiu na praça, na noite seguinte sob uma árvore, e na seguinte sob um viaduto.

Comia quando e o que lhe davam e vivia embriagado junto aos “andantes” que mendigavam pelas ruas da cidade, seus pertences nunca mais foram procurados na pousada onde os deixara...

Nos seus raros momentos de lucidez, contava sua história com detalhes que fazia pena aos seus ouvintes.

E nas frias manhãs de Maria da Fé, aquele maltrapilho homem, vestido em farrapos, passava a fazer parte de um triste cenário no pátio da estação. Ali estava ele todas as manhãs, à espera do expresso noturno, na expectativa de que ela um dia retornasse aos seus braços.

Um comentário:

Erica disse...

Oi!!! Esse daí eu já li e reli, e lembra que te perguntei se isso aconteceu de verdade? É triste mas lindo...
Beijos