terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O peregrino

O Expresso Boiadeiro, trem noturno que cruzava as alterosas buscando o Vale do Paraíba, precisamente a cidade de Cruzeiro, avançava debaixo de uma chuva torrencial, cujas rajadas de vento lavavam o interior da cabine da locomotiva.

Sua preciosa carga era uma boiada oriunda das Minas Gerais, que tinha como destino o grande e famoso “Frigorífico Bianco”, então a maior empresa da cidade, motivo de orgulho para todos os cruzeirenses.

O velho e experiente maquinista, juntamente com seu dedicado companheiro, o “Tião foguista”, se esforçavam para manter a pressão da caldeira, pois a lenha molhada do tender, já não oferecia o fogo voraz de algumas horas atrás, até encontrarem aquela violenta tempestade, na altura do lugar chamado Pé do Morro.

A roupa que antes estava colada ao corpo devido ao suor dos valentes ferroviários, agora estava ensopada também pela chuva. E estes sabiam que se por um lado aquela aguaceira toda trazia alguns inconvenientes, por outro servira para refrescar a cabine, cuja fornalha incandescente, trabalhava sem cessar, para manter a pressão de 180 lbs. indicada no grande manômetro, precariamente iluminado pela lâmpada amarelada da cabine, cujo bulbo enegrecido pela fuligem mostrava pingentes de picumã, que comprometiam ainda mais a tosca iluminação.

E a valente Consolidation avançava soltando grossas tranças de fumaça negra, apitando sem cessar para espantar o gado que normalmente pastava às margens da linha, naquele trecho. O farol, iluminando ao longe, mostrava os grossos pingos na escuridão da noite.

E eis que se aproximam da estação Coronel Fulgêncio, que antecede o grande túnel, quando o maquinista avista uma lanterna vermelha sacolejando na escuridão.

Pára o trem vagarosamente, espreguiça-se, relaxando a tensão dos últimos quilômetros, recomenda ao foguista que reforce a pressão na caldeira e complete a água do tender, depois caminha vagarosamente rumo à plataforma.

Ali chegando encontra o rondante do trecho com seu grande chapéu de couro e a pesada capa de lona. Cumprimentam-se e o rondante lhe faz algumas recomendações para a descida da serra, informando-lhe sobre os pontos mais críticos, sobretudo após fortes tempestades como aquela.

Logo depois da troca de informações de praxe, o rondante chama alguém que aguardava no outro extremo da plataforma e o apresenta ao maquinista.

Explica-lhe que aquele andarilho aparecera por ali ensopado, faminto e que tinha como destino também a cidade de Cruzeiro. “Pedi que aguardasse o trem pois achei que o senhor não se importaria de levá-lo” – conclui.

O maquinista, de coração generoso, concorda de pronto e convida então o desconhecido forasteiro a entrar na cabine da locomotiva para darem prosseguimento à viagem.

Dali até Cruzeiro, percorreriam os últimos 25 quilômetros, porém a serra, de elevada inclinação, exigiria muita habilidade para conduzir o comboio, sobretudo num tempo como aquele.

Já no interior da cabine, com o trem em movimento, o maquinista puxa conversa com o aquele homem. Somente agora observa o seu semblante harmonioso, a barba cobrindo o rosto, os cabelos compridos ondulados a cair sobre os ombros, o olhar sereno e a fala mansa.

Na medida em que o trem avança, sente-se uma atmosfera de paz, um agradável perfume silvestre invade o ambiente e o maquinista, de olhar sofrido e olhos orvalhados sente-se sensibilizado a abrir seu coração com o desconhecido passageiro.

Era véspera de Natal e ele comenta da pressa em chegar a Cruzeiro. Tinha uma promessa que, enquanto vivesse, jamais deixaria de visitar um presépio nesta data, para agradecer ao menino Jesus as bênçãos alcançadas durante o ano.

Conta ainda com os olhos mostrando grossas lágrimas, que tem um filho paralítico, de apenas 10 anos, e da certeza de que o Senhor um dia o curaria.... retira da algibeira seu relógio, confere as horas e comenta que daria tempo ainda de buscar a esposa e o filho para irem juntos à Missa do Galo ...

O desconhecido ouve com atenção, emociona-se também, e lhe destina palavras de ânimo, de fé, de confiança em Deus, da importância da resignação diante dos desígnios do Pai...

E a conversa se desenrola com tamanha emoção que, sem perceberam, já se encontravam na Estação Rufino de Almeida, em Cruzeiro, onde o gado seria desembarcado.

O pesado cargueiro pára no desvio, o auxiliar desce para fazer a chave, o maquinista agora faz a manobra, voltando somente com a locomotiva para a via principal. Absortos nos afazeres esquecem-se por uns momentos do misterioso passageiro e quando se voltam para o fundo do tender onde ele estivera nos últimos minutos, não mais o vêem. Ele se fora sem se despedir...

Os dois se entreolham, não entendem bem o ocorrido, e prosseguem até a Rotunda, onde a locomotiva ficaria para os preparativos da próxima viagem.

Despedem-se emocionados, com votos de um Feliz Natal, e seguem cada um para sua casa.

O maquinista caminha silencioso a pensar nas palavras do estranho homem que conduzira no seu trem.

Recorda-se da atmosfera de paz e harmonia que se instalara no interior daquela cabine enquanto ele ali estivera e do estranho perfume que invadira a cabine...

Caminha absorto nos seus pensamentos e nem percebe que se aproximara de sua casa. Assusta-se quando ouve a esposa gritar, chorando e rindo ao mesmo tempo, corre para ela !

E eis que de repente, pela porta entreaberta de sua singela residência, aponta um menino de pé, equilibrando-se com dificuldade...

Ele o vê pela fresta iluminada e reconhece, é seu filho!

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